Quando The Smiths serve para combater a misoginia

A letra da música  “Some girls are bigger than others”, da banda inglesa The Smiths, lançada em 1985, talvez pudesse ser lida como sobreposição de distintos tempos que, na verdade, confluem para afirmar uma única verdade: some girls are bigger than others.

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Quando Morrisey, vocalista da banda, escreveu essa letra, parecia, por um lado, interessado em brincar com elementos diversos e, por outro, bastante zeloso de que a sua combinação pudesse ser útil para produzir algo próximo de um poema. Contudo, ao misturá-la com a melodia, algo se inverte e a letra, que parecia ter forma definida, torna-se ainda mais elástica.

Assim, se de uma era a outra (from the ice-age to the dole-age), o cantor descobre que a humanidade se ocupa apenas de uma única preocupação, é possível supor que para algumas garotas serem maiores que outras, para isso, também, haja uma única razão. Essa razão, contudo, não é aparente.

Todavia, antes de ir adiante, devo adiantar que em nenhum momento minha interpretação de some girls are bigger than others [algumas garotas são maiores que outras] está conectada aos aspectos físicos, mas a certos elementos e camadas, tanto sociais quanto culturais, que indicariam de modo bastante abstrato o valor dessas garotas.

Não à toa, toda a música pode ser encarada como uma observação do comportamento humano em geral, principalmente de nós, homens, em relação as mulheres. Entretanto, ao observar esse comportamento, sem necessariamente caracterizar o homem, Morrisey nos convoca para, no mínimo, duas tarefas: ver e escutar as mulheres.

De acordo com a música, é como se tudo se transcorresse num mundo em que há uma escala da valores para enquadrar tipificar as mulheres. Uma visão, nesse sentido, um tanto romântica e escapista.

sendbinary_altaPor exemplo, um encontro, quase que proibido, entre sujeitos de diferentes classes sociais que lutam para manter a relação (Como fazer amor com um negro sem se cansar, numa certa tradição literária, é um ótimo exemplo a meu ver) ou, ainda, quando um homem mais novo conhece uma mulher mais velha que, supostamente, lhe ensina aquilo que ainda não sabe (o filme A primeira noite de um homem (1967), nessas circunstâncias, seria revelador).c1ed76ebaa07f26898173daa05d2a1ba

 

 

Em ambas as situações, então, antevemos aspectos que, com as devidas ressalvas, atravessam todo um conjunto de experiências que, atualmente, conformam nosso comportamento social, mas que estão situadas ao longo de vários processos históricos diferentes e que, como na música, acabam se combinando num comportamento muito comum entre nós, homens: a misoginia.

 

Não à toa, muitas das vezes, quando um amor soa transgressor, ele é senão isto: uma experiência de sofrimento acompanhada de enorme tensão que, geralmente, culmina na impossibilidade dos amantes permanecerem juntos. Regras, normas e interdições morais, revestidas de argumento supostamente ético, aparecem para impossibilitar essa experiência e, assim, funcionam como obstáculos que só acirram ainda mais as distâncias.

Então, como lidar com tais questões?

sendbinary_alta (1)Como argumentou Howard Bloch, em A misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental (São Paulo: 34, 1995), quando uma mulher parece inalcançável para um homem, não há nenhuma oposição entre a exaltação e a aversão dele para com ela. Ao contrário, na base dessas ações e formas, a conexão entre uma e outra é tão direta que ao colocar a mulher no pedestal o homem também estaria criando os mecanismos para a denegri-la. Ou seja, a imagem da mulher idealizada (como a virgem, a dona, a mulher que se deseja e não se pode ter) impede-nos de vê-la em sua verdade porque retira a sua humanidade.

 

 

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Assim, segundo Morrisey, até mesmo Antônio, enquanto abria um fardinho de cerveja, teria dito para Cleópatra que some girls are bigger than others e, indo além, afirmava que some girls mothes are bigger than others girls mothers. Mais uma vez, tempos distintos aparecem na letra: averiguemos a repetição.

Todos nós conhecemos a história, quase mítica, de Cleópatra e a sua luta para não sucumbir a Roma. Não é gratuita nossa fascinação, afinal, além do desfecho trágico, essa história nos adentra com tanta força porque, para ficarem juntos, Cleópatra e Antônio optaram pelo suicídio.

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O suicídio, não é só tabu, porque se assemelha a um atentado contra a própria vida, mas é também o desfecho de inúmeras narrativas que, no mínimo, desde a Idade Média, retratam amores impossíveis: Tristão e IsoldaRomeu e JulietaOs sofrimentos do jovem Wether.

Histórias que, ao final, além de revelar a impossibilidade do amor, demonstram a misoginia em sua melhor forma: o homem que, após desqualificar o seu amor, desqualifica a si mesmo e, renunciando ao amor, abre mão dele próprio. A conta dessa história, então, ficaria nas mãos da mulher que, mais uma vez, seria a razão desse ato.

No caso de haver algumas mães maiores que outras mães, já não se trataria do incesto, aquilo que segundo Freud, em O mal-estar na civilização, nossa cultura interdita porque a mãe, enquanto lugar origem, com seu útero, representa a nossa primeira conexão com o mundo, além de ter se relacionado com aquele pai onipresente que, em algum momento do passado, resolvemos tirar do poder com a condição de que nenhum de nós ocupasse seu lugar.

upsvq22n-980x2000O fato é que para haver mães maiores que outras também deve haver a exaltação, consequentemente tal gesto vem acompanhado de seu oposto: a negação. Por isso, é significativo que ao falar da letra da música, numa entrevista de 1986, Morrisey alegasse desconhecer a ideia de feminilidade e que, só após “Some gilrs are big than others”, ele passasse a perceber a diferença entre cada uma delas. Ainda em pleno século XXI, Morrisey, longe de ser misógino, demonstra seu desconhecimento em relação as mulheres, desconhecimento esse que parte não só da dificuldade em compreender a genética do outro gênero, mas as suas demandas e desafios. Entretanto, não sendo esse o assunto, as falas de Morrisey demonstram que a nossa tarefa, acima de tudo, é valorizar o lugar que, ao longo do tempo, foi negado às mulheres na história. Ou seja, se antes as silenciávamos, agora, é nossa obrigação, pele menos deveria ser, não silenciá-las.

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Porém, voltando a questão do valor que vamos dar a cada uma delas, o desafio é evitar esse caminho porque, então, estaríamos, mais uma vez, conferindo algo que, teoricamente, é antítese da história: a natureza. A natureza feminina não só não existe como está associada a imagens que, a todo instante, esvaziam o sentido da ação feminina, já embutindo alguma qualificação que pormenoriza a sua luta.

É significativo que, ao final, a letra termine não com a impossibilidade da relação, mas a aproximação que, mesmo que sonhada, coloca tanto o homem quanto a mulher no mesmo espaço que, a meu ver, reside na intimidade: a cama, o travesseiro, o lugar que ambos escolhem dividir e, talvez, construir uma vida mais ética porque se aceitam como são.

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